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terça-feira, 21 de agosto de 2012

Fazer o quê?



Fazer o quê de todo este mel,
Do crescendo das tardes em ouro, pólen e Verão,
Se a vida é, afinal, sempre e só
Dos outros, afinal, sempre e só
Transformada em vala comum,
Onde tentar o bem nosso
Pelo bem dos outros
Já não é sequer o mal menor,
Cansados de mais, brutos de mais,
Nós mesmos de mais,
Sempre morais numa impossível
E exaltada falta de paciência,
Numa pressurosa falta de ternura,
Nós sempre tão corredios,
Sardónicos até nos estertores,
Impérvios a essa música que nos tece
Perdidos em pleno espaço?
Há ainda um risco para nos salvar
De toda esta segurança,
Do geométrico, bancário, ergonómico
Acomodar-se da alma,
Do espírito flácido e famélico,
Algo que nos possa restituir
O gosto dos dias,
Esse que teremos na boca
Em hora extrema, ainda o gosto dos dias?
Qual o gosto dos meus dias?

Nuno Rocha Morais
"Últimos Poemas", Quasi, 2009

2 comentários:

  1. Assim, Sem Nada Feito e o Por Fazer

    Assim, sem nada feito e o por fazer
    Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
    Vejo os meus dias nulos decorrer,
    E o cansaço de nada me aumentar.

    Perdura, sim, como uma mocidade
    Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
    Mas a mesma esperança o tédio invade,
    E a mesma falsa mocidade cansa.

    Tênue passar das horas sem proveito,
    Leve correr dos dias sem ação,
    Como a quem com saúde jaz no leito
    Ou quem sempre se atrasa sem razão.

    Vadio sem andar, meu ser inerte
    Contempla-me, que esqueço de querer,
    E a tarde exterior seu tédio verte
    Sobre quem nada fez e nada quere.

    Inútil vida, posta a um canto e ida
    Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
    Obra solentemente por ser lida,
    Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

    Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

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  2. LIBERDADE

    (Interpretado na voz de João Villaret)

    Ai que prazer
    não cumprir um dever.
    Ter um livro para ler
    e não o fazer!
    Ler é maçada,
    estudar é nada.
    O sol doira sem literatura.
    O rio corre bem ou mal,
    sem edição original.
    E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
    como tem tempo, não tem pressa...

    Livros são papéis pintados com tinta.
    Estudar é uma coisa em que está indistinta
    A distinção entre nada e coisa nenhuma.

    Quanto melhor é quando há bruma.
    Esperar por D. Sebastião,
    Quer venha ou não!

    Grande é a poesia, a bondade e as danças...
    Mas o melhor do mundo são as crianças,
    Flores, música, o luar, e o sol que peca
    Só quando, em vez de criar, seca.

    E mais do que isto
    É Jesus Cristo,
    Que não sabia nada de finanças,
    Nem consta que tivesse biblioteca...

    Fernando Pessoa

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